Hesitei antes de falar sobre as proibições de fumar que se avolumam a cada dia, mobilizando, como no caso de São Paulo, esquadrões de funcionários públicos, em operações cinematográficas de repressão aos infratores. O sujeito que faz algum reparo às leis antifumo é imediatamente qualificado de vendido à facinorosa indústria do tabaco. Como, pelo menos no meu caso, nunca recebi um tostão de nenhum fabricante de cigarros ou plantador de tabaco, devo ser ainda pior, ou seja, inocente útil, análogo aos do tempo do comunismo, que nem ao menos botavam a mão no celebrado ouro de Moscou.
Mas também não vou defender o cigarro. Do ponto de vista da saúde, não há nada de bom que possa ser dito do cigarro, nem mesmo do efeito ansiolítico que tem sobre os viciados. Certamente é melhor que ele se receite com um especialista do que se envenenar fumando. É também inegável que para muitos cigarro cheira mal, empesteia o ambiente e causa diversos transtornos, alguns de grande monta, como incêndios ou explosões. E, evidentemente, o não-fumante tem o direito de exigir não ser vítima dos efeitos de algo que ele evita.
Mas as leis vão bem além disso. Protegem também o fumante que não quer ser protegido e que não tem intenção de largar o cigarro. Lembro de uma piada velha, cujo protagonista é um beberrão, mas podia ser um tabagista. O amigo do fumante diz que ele deve parar porque o fumo é uma morte lenta. Ao que o fumante, como vocês sabem, responde que tudo bem, ele não está com pressa. O fumante também sabe disso e a relação do homem com a morte e a saúde é complicada demais para ser legislada. A trajetória individual do ser pensante é rica demais, irracional demais, para ser presa a esse “dever-ser” incorporado pelo Estado.
A lógica por trás da proteção é perigosa porque leva a situações cujos limites ainda não podem ser traçados e são demasiadamente vagos. Já li que, em algum lugar do famoso Primeiro Mundo, serão proibidas peças em que os atores fumam e, se não me engano, já apareceu um problema em São Paulo, pois um personagem fuma e não se pode fumar em teatros. Se as peças suspeitas de induzir ao tabagismo são proibidas, por que não proibir logo romances ou matérias jornalísticas que de alguma forma apresentem o fumo sob uma luz neutra ou favorável?
A proteção também tem falhas, que podem ser sanadas por novas investidas desses engenheiros sociais. Não é possível que não se tenha notado que um setor da população particularmente vulnerável não foi contemplado pela legislação. As crianças de pais fumantes continuam a ser expostas aos efeitos da fumaça, o que pode vir a justificar que, no futuro, se apliquem sanções severas a quem tem filhos e fuma. Imagino que um dos mecanismos para isso seria interrogar as crianças todos os dias, nas escolas, sobre os pais fumantes. Os dedos-duros infantis receberiam, é claro, diversos reforços, talvez até nas notas. E acredito que, para os mais exaltados, tirar dos pais fumantes a guarda dos filhos não seria uma medida de todo incogitável.
Alega-se também, com base em afirmações estatísticas discutíveis, que os custos impostos pelos fumantes à saúde pública são muito grandes. Se a moda pegar, vamos com certeza testemunhar outros esforços nesse sentido, todos eles envolvendo o controle do comportamento individual. Além disso, a burrice e a falta de ter o que fazer às vezes dominam o cenário e não acho inteiramente descabido imaginar um legislador que pretenda, por exemplo, banir as motos da circulação em grandes cidades, por causa das despesas públicas com o socorro e assistência aos acidentados.
Para muitas pessoas, há um prazer mórbido em proibir, em uniformizar o comportamento alheio. Muita gente também não fica satisfeita apenas em ver a proibição estabelecida, como agora, porque o fato de existir alguém que fume, mesmo socado dentro de casa, irrita e exaspera, a ponto de dar vontade de prender o infeliz ou degredá-lo numa ilha deserta sem nada que ele possa fumar. É disso que tenho medo, porque me acostumei a um pouquinho de privacidade e vejo que ela vai gradualmente para a cucuia. Segundo me contam, por exemplo, a Microsoft está experimentando um programa para proteger trabalhadores, monitorando permanentemente dados como pressão arterial, batimentos cardíacos, respiração etc. Ótimos para prevenir, por exemplo, um infarto, mas também bons para pegar a hora em que um e-mail irritou seu destinatário ou um cochilo curto interrompeu o trabalho. Algumas empresas já testam regularmente seus empregados, para verificar se, mesmo em casa e sem incomodar ninguém, usam alguma substância nociva ou proibida. Não sei se monitoram quem fuma em casa, mas deve haver algumas que o façam e não duvido nada que algum empresário brasileiro não esteja sonhando com isso.
Bem, tem que goste. O mundo, com essas medidas, não fica tão inquietante, tão desarrumado, tão imprevisível. Vamos ser cada vez mais como as abelhas, as formigas ou os cupins, tudo organizado, tudo uniforme, nenhuma atividade inútil, todo mundo se comportando em função do bem comum, ninguém fazendo nada que não possa ser racionalmente justificado. Eu sei que haverá quem ache que nisso vai um certo exagero e eu concordo: exagero nas previsões moderadas, porque suspeito que a verdade vai ser muito pior e fico bastante grato por, se der sorte, não estar mais aqui para ver. Quanto aos anti-tabagistas militantes ou religiosos, que tenham sucesso nas próximas batalhas para varrer o feio vício da face da terra. Mais cedo ou mais tarde, todos comemorarão na área de não-fumantes do cemitério.
O Globo, 16/8/2009