As últimas semanas vêm demonstrando uma dimensão nova, para ficar, da nossa cultura. Aí está a decantação de uma consciência política a avançar no fato consumado, ainda que sempre perfectível, da nossa democracia. Às sucessivas manifestações do povo na praça, servia de estopim o repúdio da corrupção pública. Mas tal, na melhor leitura sociológica, a exprimir um moralismo das classes médias, sem atingir como um todo o "povo de Lula", saído diretamente da marginalidade pelo empenho prioritário dos governos petistas.
O julgamento do mensalão levaria ao extremo a expectativa do país do status quo, na punição exemplar dos responsáveis. Seu clímax chegou ao mais importante julgamento do Supremo, no caráter decisivo que, pelo desempate de votos, ganhava a manifestação do ministro Celso Melo. Não há só a assinalar a absoluta consciência do magistrado, mas o rigor único de seu raciocínio jurídico e a demonstração hermenêutica implacável na acolhida dos embargos dos réus. É dificílimo que a voz do Judiciário, nesses casos-limite, não se sinta condicionada pela enormidade da expectativa de uma opinião pública assentada no establishment e no sentimento do país midiático. A irretocabilidade da palavra do ministro foi acolhida, desmontando-se todo o repúdio do país acordado para o mensalão.
Manteve-se, ao mesmo tempo, toda a liberdade do "povo na praça", em manifestações cada vez mais especializadas e com interesses concretos, de aumento de salários e vantagens empregatícias. Não se adensaram as demandas dos primeiros dias, ligadas às prioridades sobre educação, saúde ou segurança. Sobretudo, porque, como manifestações nascidas da própria possibilidade democrática do protesto, ganharam lideranças e transformaram-se pelos movimentos de opinião, ou pela semeadura de novas e consistentes facções políticas. A consolidação democrática veio do próprio Planalto, cioso de manter e, mesmo, acautelar pela polícia o sucessivo grito das ruas. Morreria, de morte morrida, exausto na sua manifestação irreprimida. É este avanço à liberdade, pondo à prova até a desatualização do sistema, e garantindo os nossos jogos de autonomia dos poderes.
Desponta também, nestes dias, a palavra presidencial nas Nações Unidas, levando o reclamo da nossa segurança ao âmbito internacional, diante do avanço da espionagem sistêmica americana e dos controles eletrônicos trazidos às comunicações do Planalto e a setores cruciais da nossa economia, como a Petrobras. Dilma soube destacar a gravidade do problema de uma confrontação entre soberanias para, de vez, transferir a sua disciplina à ordem internacional. Não se transformou, apenas, por aí, a Presidenta em porta-voz de todas as soberanias agredidas por esse controle secreto e unilateral. Propôs um novo estatuto para a disciplina, no que o avanço tecnológico propiciado pela internet devolvia aos Estados Unidos dimensões hegemônicas como potência global. É a voz de nosso amadurecimento democrático que confronta o mundo da "civilização do medo" - de ameaça aos direitos humanos e de estatutos unilaterais de segurança - e redobra, de vez, o clamor pelo Estado de Direito.
Jornal do Commercio (RJ), 4/10/2013