Toda vez que chego a Coimbra enxergo em tudo “um paixão e um selo resistência... uma alma de muralha”. Penso nos tantos brasileiros que ali estudaram, próceres da pátria, confrades e patronos de cadeiras da Academia Brasileira, brasileiros distinguidos com doutoramento e portugueses muito vinculados a nós e vejo o desfile deles todos na minha cabeça.
Recordemos alguns poucos entre os muitos nomes: José Bonifácio de Andrada e Silva, Luiz Guimarães Filho, Gilberto Freyre, Gonçalves Dias, José Sarney, Silva Alvarenga, Silva Ramos, Hipólito da Costa, Pinto Ferreira, Cláudio Manoel da Costa, Souza Caldas, Tomás Antônio Gonzaga, Padre Nóbregai.
Bacharel em Direito, como quase todos nós da Academia Brasileira, Coimbra me impões a reflexão do tema jurídico. Sem precisar dizer que a Academia é também uma Casa de juristas.
Até por ser cada vez mais comum se falar de uma certa “crise de paradigmas” neste começo de milênio, afetando o Direito, trouxe o assunto à homenagem que a Universidade nos prestou do discurso que me tocou fazer.
Tal situação pode derivar, entre outros fatores, no campo da ciência do Direito do fato de que o positivismo jurídico e seus consectários, após alçarem a um patamar de conhecimento estabilizado, universalmente reconhecido, já não estariam suportando as demandas das sociedades modernas e tecnologicamente avançadas.
Há, perpassando esses fatos, perguntas inadequadas e respostas com roupagem do inócuo, mas é necessário que a relação tecnologia/sociedade tenha equilíbrio.
As rápidas transformações por que passam as relações sociais, com reflexos em todos os seus subsistemas, decorrem em boa medida da crescente velocidade com que pessoas, bens, capitais e informações circulam sem limitações.
O ícone desse processo, talvez seja certo paradigma da informatização, que não pode ser infirmada como realidade de muitas das nossas convivências. Qualquer acontecimento pode estar no mais remoto lugar e ao mesmo tempo ser sentido sem retinas intermediárias.
Há processos sem precedentes no campo das ciências exatas e biológicas, fazendo anacrônicos conhecimentos tidos como atualizados ou desfazendo alguns dogmas consolidados.
Sem que seja um despropósito, por outro lado, por-se-ia em cheque de certa maneira o próprio conceito da pessoa, que passaria a depender tanto da Ciência, quanto da natural reprodução da espécie humana.
No plano internacional, é fácil perceber a interdependência crescente dos países, a se destacarem os planos econômico e financeiro. A formação dos blocos econômicos – como o Mercosul e a União Européia – assim como a complexidade dos problemas novos do tipo meio ambiente, bioética, por exemplo, bem como a rapidez das mudanças que não respeitam as fronteiras territoriais estariam levando à inaplicabilidade de seqüência do modo de produção atual e das regras jurídicas e, também, a uma certa crise do Direito e do Estado.
De outra parte, é igualmente fácil perceber a ineficácia de organizações internacionais que assistem no final de século a um sangramento do império do indivíduo, na miséria das guerras, inclusive das urbanas não militarizadas, estas, agravadas no conjunto das contradições da vida contemporânea de cidades incivilizadas. O aumento da desigualdade e a desestruturação social animam a violência em suas diversas manifestações.
No plano econômico e de organização do Estado, os direitos sociais – assim considerados aqueles que implicam uma prestação positiva por parte do Estado – são muito atingidos.
Adela Cortina costuma referir-se à distinção que há entre o manejo do direito e os meios de fazer justiça, na reflexão de que um mundo economicamente global exigiria uma justiça igualmente global.
Assiste-se a uma volúpia do poder de influência das empresas transnacionais e grandes corporações econômicas sobre a condução de políticas publicas ou emissão de novos diplomas legais pelo Estado, principalmente os menos desenvolvidos, muitos deles subjugados por questões ligadas ao psicossial e à assimetria de poder. Chega-se até mesmo ao ponto de detonar o processo de revisão de normas constitucionais e legais, para que os países possam se candidatar a receber investimentos dessas corporações e inserirem-se no comércio internacional.
Mas é sábia a advertência que não se deve confundir o mercado com a sociedade. Isto, sob os cânticos da utopia da globalização a que se refere John Gray (in – False Dawn) e como se dela resultasse um mundo sem fronteiras em vez da realidade de um mundo com novas fronteiras, na heterogeneização e conflitos entre camadas sociais, de que falou Elmar Altvater.
Observa-se também a emergência de novos direitos, de cunho coletivo e difuso como os do meio ambiente, consumidor, patrimônio histórico, cultura e artístico, sem esquecer o patrimônio imaterial, o que vem a reforçar criticas aos paradigmas da cultura jurídica tradicional.
Portanto, o que esperar do direito positivo em sua versão normativista convencional, com suas regras hierarquizadas por meio de critério lógico-formais, em contextos cada vez mais complexos, mutáveis e policêntricos?
Consignei naquela Coimbra, que é um condomínio de sonhos e realizações da vocação universalista da cultura portuguesa, a grande importância do Encontro de academias, para proclamarmos nós o reconhecimento de que a nacionalidade brasileira, como a consciência social e política, muito deve àquela Universidade.
Propus tratássemos de possibilitar o reforço do intercambio e cooperação da área do conhecimento entre Brasil e Portugal. Somos povos solidários diante do marcante destino que devemos vigiar, como um permanente amanhecer.
Afinal de contas, Chesterton já nos disse que “as coisas essenciais nos homens são as coisas que eles possuem em conjunto e não as eu possuem separadamente” e Miguel Torva ensinou que “é preciso ter pelo menos um palmo de ilusão”.
Diário de Pernambuco (PE) 29/10/2006