É preciso ouvir o truísmo de Mario Vargas Llosa para que sejam repensados os caminhos da redenção da última flor do Lácio
DENTRO OU fora de festivais literários, o Rio de Janeiro sempre recebe atrações da cena internacional, pela sua indiscutível capacidade de imantar mitos. Foi assim na década de 20, quando trouxe para o nosso convívio Albert Einstein, já famoso, e, mais recentemente, foi a vez de Mario Vargas Llosa, um dos maiores escritores contemporâneos.
Conosco, aliás, ocorreu uma cena digna de registro, quando tivemos o ensejo de visitar pela primeira vez a Real Academia de Espanha.
Os fardões ficam dependurados em cabides especiais, em uma das dependências, com os nomes famosos nitidamente afixados. Assim que nos deparamos com o registro de Vargas Llosa, manifestamos a d. Fernando Carreter, então presidente, a nossa estranheza: "Ele não é peruano?". A resposta veio pronta: "Foi. Hoje é espanhol". Abdicara da sua nacionalidade por causa de acontecimentos políticos provenientes da sua fracassada tentativa de ser presidente do Peru.
Aqui se pode questionar não o direito de uma pessoa maior de idade, em pleno gozo dos seus direitos políticos, de candidatar-se a um cargo eletivo, seja ele qual for. Um escritor de ofício, com renome internacional, já citado para o Prêmio Nobel de Literatura, é ocorrência mais rara.
Nada disso, aliás, impediu Vargas Llosa de se aborrecer bastante na campanha eleitoral, pois os seus inimigos não perdoaram a sua ousadia. Ele foi atacado de forma vil, inaceitável, o que o levou à decisão extremada de abandonar a própria cidadania.
Por aí se pode aquilatar o tamanho do seu desgosto, não com o povo que talvez tenha até sufragado o seu nome, mas com todo o lamentável processo.
O autor de "A Cidade e os Cachorros" e "Pantaleão e as Visitadoras" participou de colóquios por aqui, ensejo em que aproveitou para falar com a sinceridade que nele todos reconhecem. Só não abriu a boca, aos 71 anos, para dizer algo sobre sua famosa briga com Gabriel García Márquez: "Não aceito perguntas sobre ele".
Citando Flaubert, Vargas Llosa, muito amigo da nossa querida Nélida Piñon, sintetizou a sua forma de ver a literatura como ofício ou lazer: "Escrever, para mim, é uma forma de viver". A verdade é que tem vivido de forma bastante competente, como demonstrou a reação do público que o aplaudiu no auditório do Centro Cultural Banco do Brasil.
Sem saudosismo, Vargas Llosa evitou comparar-se a outros escritores, mas concordou com a afirmação de que "hoje, escreve-se bem diferente do que há 50 anos. Agora, temos de encarar a atração dos meios audiovisuais". E foi além, para nos permitir esse comentário: "Hoje, a literatura não é mais considerada uma disciplina fundamental nos colégios, o que é uma verdadeira aberração. Por isso, encontramos profissionais destacados que são analfabetos funcionais".
A denúncia é pertinente. O mesmo Ministério da Educação, no Brasil, que demonstra séria preocupação com o estado lamentável da língua portuguesa na sua ministração em nossas escolas, é o órgão que, em governos passados, liderou a retirada da literatura dos currículos de ensino médio do país. Quer realizar uma olimpíada de português, mas retira os fundamentos do processo de aperfeiçoamento lingüístico, que se faz por intermédio da leitura.
Foi uma decisão incompreensível do Ministério da Educação. Qual a vantagem de retirar do currículo a cadeira de literatura brasileira? Se fosse para descongestionar a grade, a opção jamais poderia ser essa num país em que se lê tão pouco e só uma pequena elite tem acesso aos nossos bens culturais, de que o livro talvez seja a maior expressão.
Isso motivou um protesto da Academia Brasileira de Letras, entregue aos ministros que se sucederam na pasta no governo Lula, sem que tenha havido resposta ao pleito da casa de Machado de Assis, defensora estatutária da língua portuguesa e da cultura nacional. Somos amplamente favoráveis a uma rediscussão da matéria, a partir do Conselho Nacional de Educação e dos conselhos estaduais.
A coerência, já vimos em outras ocasiões, nunca foi o nosso forte. É preciso ouvir o truísmo de Mario Vargas Llosa, falando a uma platéia brasileira que o admira muito, para que sejam repensados os caminhos da redenção da última flor do Lácio, nem tão inculta, mas sempre bela.
Folha de S. Paulo (SP) 10/7/2007