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2004 acabou ontem

 

O balanço da última semana de 2004 foi de arrepiar os cabelos e pedir proteção aos terreiros da Bahia. E as más notícias continuam. A tragédia tsumani ainda não acabou. Os dramas humanos desvendados fazem corações ganhar um instante de compulsão.


Na Argentina, jovens que desejavam usufruir da vida experimentaram o destino da morte.


Lembro-me de uma incelência que ouvi num sepultamento do sertão, cantada com voz de "llanto jondo": "A bandeira deste ano / Trouxe um sinal de guerra / Uma é verde / Outra encarnada / Outra uma rosa amarela".


Eça de Queiroz, em uma de suas "Cartas da Inglaterra", dizia que os desastres que mais nos tocam são os mais próximos. Naquele tempo não existia o tempo real. Mortos na China -escrevia ele- não são iguais a um acidente com vítimas na sua rua. Este tocava mais. Mas, na sociedade da informação globalizada, tudo está perto: a onda da Indonésia entra na sua casa, pela televisão, bem como o desespero das vítimas da discoteca de Buenos Aires.


O tempo se comprime. Como sabemos de tudo no mesmo instante, temos a sensação de que as coisas desabam em bloco e de que vivemos sempre no inferno astral. O inferno astral é a vida, que comporta lados bons, a começar pelo maior de todos: a graça de viver! Somos os óvulos e os espermatozóides sorteados por Deus para se encontrarem. Bendito encontro. Por causa dele escrevo na Folha estas observações nada singulares.


As festas religiosas preconizadas pela igreja se concentram em duas vertentes de sublimação. O Natal, a alegria; a Paixão, a tristeza. As festas natalinas deste ano foram mistura das duas coisas. Antigamente, elas não se esgotavam no dia 25 de dezembro, alongadas e coincidentes com o Ano Novo, que Vieira sempre chamava de Ano Bom. Iam até o Dia de Reis, 6 de janeiro, ontem, com a Festa dos Pastores, cordões de folia com dois reis e duas rainhas. Alas das donzelas e dos pastores. Hoje, tudo desapareceu. Os motivos são óbvios: o gasto com a vestimenta de reis e pastores é alto e o povo não tem como pagar. A cesta básica não inclui essas culturas. Outro motivo bem mais real é a falta de virgens para o cordão das donzelas, que a pílula acabou. A santidade era associada à pureza e cordão de Reis com não virgens bate na crendice popular: "Se as virgens não forem virgens, Deus não aceita a homenagem". Coisas do tempo da "janambura".


Mas ficou a tradição da "queimação das palhinhas". Eram as folhas que ornamentavam o presépio. E, como somos festeiros, o fim das festas é no Dia de Reis, com esse fogo nos enfeites do presépio, momento em que todos estão de fogo, chocolate, cachaça e bolos.


Não posso deixar de citar, porque está na memória de minha vida, receber de uma moça cortejada um papel de Reis todo rendado, com a mensagem escrita: "Dar Reis não é vergonha / Vergonha é não pagar / Um coração como o seu / A mim não pode negar!".


E haja coração.


2004 só morreu ontem, com o fim dos presépios e dos pastores, reisados e cheganças. Lula queimou as palhinhas com um balanço do futuro. A Guerra do Iraque mata o governador de Bagdá. O dólar sobe. Os preços de liqüidação baixam.


E vamos ao trabalho que ninguém é de ferro.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 07/01/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 07/01/2005