Essa publicação faz parte da coleção Coleção Afrânio Peixoto
Conheci Alvaro Moreyra em 1937 e desde então sempre o achei um homem bom, simples e honesto.
Nesses treze anos muita água correu por baixo das pontes. Invencíveis países se escangalharam, outros se dispõem com galhardia a ter o mesmo fim. No ambiente literário do Brasil numerosas transformações se deram: gente que vivia no leste passou ligeira para oeste, e é comum cidadãos cautelosos acenderem ao mesmo tempo velas a Deus e ao Diabo. Na contradança das opiniões, Alvaro Moreyra permaneceu fiel às suas idéias. Certo, o indivíduo não é obrigado a pensar invariavelmente de um jeito. Posso hoje ser ateu e amanhã resolver-me a adorar Jeová, cobrir de cinza a cabeça nas lamentações, freqüentar a sinagoga. Mas se a mudança rápida me for vantajosa, leva o público a dúvidas. O escritor necessita especial coragem para tal conversão, que inutiliza a obra realizada. Salvo se o sujeito escreve apenas com o intuito de encher papel.
Diferente espécie de coragem possui Alvaro Moreyra. Perfeita coerência, na verdade prejudicial, se virmos as coisas do lado prático. Não é agradável andar uma pessoa a chocar em portas fechadas, esforçar-se por escalar muros altos, enquanto em redor cavalheiros hábeis usam com proveito escadas e gazuas. Homem honesto.
Devo referir-me aos outros dois adjetivos empregados ali no começo destas linhas. Alvaro Moreyra tem uma singeleza quase infantil. Rijos padecimentos não lhe deitaram amargor na alma; conservou neles estranha doçura. Oculta as dores com sorrisos, conta-nos anedotas: parece recear transmitir-nos a sua mágoa. Somos bichos complexos, o ofício nos torna vaidosos. E causa-nos espanto vê-Io tão sincero e modesto. Vamos encontrá-Io à mesa, redigindo; olhamos o trabalho, sugerimos alteração. Acha o conselho razoável e agradece. Expõe minucioso as qualidades de um amigo ausente, ótimo companheiro. Esfrega as mãos a exagerar virtudes que dificilmente percebemos. Dá-nos a impressão de julgar a nossa camaradagem um favor. Homem simples.
E bom. Não consigo furtar-me às comparações. Manejamos folhas - e mordemo-nos. Atacar é fácil, gostamos de atacar. Se temos ensejo de louvar alguém, ficamos atrapalhados. Não sabemos cantar loas. Almas secas, duras. Que diabo vamos elogiar nesta miséria? Somos ásperos. Egoístas, mesquinhos, a naufragar, buscando terra dentro do nevoeiro. A terra está próxima, chegaremos lá. Dificil entender isso. E continuamos a arranhar-nos. Nesta tristeza, Alvaro Moreyra nos dá uma lição. Quer juntar-nos, ignora os nossos defeitos. Impossível notar a fraqueza e a maldade. Homem bom. (Graciliano Ramos)